Naquela manhã o meu pai regressou a casa meia-hora depois de ter saído para o trabalho. Havia atravessado a correr o Campo da Escavadeira depois de, à entrada da fábrica, ter ouvido dizer que em Lisboa estava a decorrer um golpe de estado.
Eu ainda estava a tomar o pequeno-almoço quando ele entrou em casa e ligou o velho rádio Grundig que a minha mãe tinha em cima da máquina de costura e a chamou, para que fosse para junto dele.
A rádio emitia música clássica e eu achei estranho como eles falavam em voz baixa. A dada altura a música parou e a voz do locutor fez-se ouvir anunciando “Aqui, posto de comando das Forças Armadas ...” .
A minha mãe levou as mãos à cabeça largando um “Minha Nossa Senhora!” enquanto o meu pai a mandava calar com um “Espera, quero ouvir!”. Soube que alguma coisa se passava.
Nesse dia não fui à escola nem jogar à bola no descampado, com os outros miúdos. Passei o dia em casa, com os meus pais, ouvindo com eles os comunicados que o Movimento das Forças Armadas (MFA) emitiu durante todo o dia, a espaços, sobre o evoluir da situação.
Golpe de Estado, Fascismo, Polícia Política, Guerra Colonial e Liberdade eram palavras que eu não conhecia. Já ouvira falar de uma guerra em África e das nossas colónias na escola, mas as outras eram-me completamente desconhecidas. Nesse dia, contudo, ouvi-as pela primeira vez mas não perguntei aos meus pais o que queriam dizer. Tudo se estava a passar muito depressa e via-os preocupados.
Quando foi possível ver imagens na televisão lembro-me de uma multidão num largo a que chamavam do Carmo, um “carro de guerra” a que o locutor chamava chaimite e muita, muita gente a gritar quando o carro se movimentou. Lá dentro, ouvi, ia o Presidente do Conselho, aquele senhor que, todos os meses, fazia aquele programa que se chamava “Conversas em Família”.
Nos dias seguintes o povo andava na rua, contente, a falar do golpe de estado e dos militares, de um major chamado Otelo Saraiva de Carvalho e de um capitão Salgueiro Maia. Falava-se de Marcelo Caetano que ia para a Madeira, da PIDE e de presos políticos. Trocavam-se abraços e ofereciam-se cravos.
Os meus pais, visivelmente mais contentes, retomaram a vida normal, se normal se pode considerar ter sido a vida nos dias imediatamente seguintes ao 25 de Abril de 1974.
A 27 de Abril libertaram os presos políticos e começaram a prender os PIDES e aqueles que eram apontados de fascistas. Nas fábricas da CUF começaram a aparecer bandeiras vermelhas com foice e martelo e a GNR mantinha-se no interior das esquadras e já não andava a cavalo pelas ruas do Barreiro.
Começaram a chegar os políticos exilados e o primeiro 1º de Maio foi de festa com todos juntos a prometer um país novo, justo e livre.
Olho agora para trás, 34 anos volvidos, e pergunto-me como pudemos ser tão ingénuos deixando que gente tão incapaz tivesse assumido o controlo da sociedade portuguesa e desperdiçado a oportunidade que outros países tiveram só depois de terem passado por guerras sangrentas.
A Inglaterra, a França, a Alemanha, a Itália ou o Japão começaram de novo, mas só depois de terem passado por guerras onde sofreram milhões de mortos e perderam tudo, nalguns casos até a dignidade.
Nós fomos bafejados pela sorte e conquistámos esta oportunidade com um cravo nas espingardas e meia dúzia de mortos, em todo o processo. Talvez por isso não soubemos aproveitar a situação.
Otelo Saraiva de Carvalho foi usado pelos escroques políticos e acabou a apoiar atentados, sem sentido, contra pessoas ou estruturas inocentes, numa tentativa de fazer uma revolução proletária em que ninguém estava interessado.
Salgueiro Maia recolheu ao quartel, uma vez cumpridas as missões que lhe couberam (marcha sobre o Terreiro do Paço, assalto à sede da PIDE e tomada do Quartel do Carmo), nunca se dedicou à política e acabou por morrer ignorado e esquecido pelos seus pares.
Hoje a sua estátua está em lugar de destaque, em Santarém, mas durante anos esteve perdida, sob um amontoado de sucata, até ser descoberta cheia de pó e mandada restaurar por Moita Flores, Presidente da Câmara desta cidade, 30 anos depois do 25 de Abril.
Em minha opinião ao 25 de Abril aconteceu o mesmo. Esquecido como Salgueiro Maia e os verdadeiros heróis a quem devemos a nossa liberdade, o espírito do 25 de Abril foi usurpado por aqueles, doutores e engenheiros com diplomas de RGA e passagens administrativas, que tomaram conta das nossas cidades, das nossas instituições e nos governam desde então.
Em homenagem a Salgueiro Maia, eu recuso-me a comemorar o 25 de Abril enquanto os responsáveis pela adulteração do seu espírito não forem responsabilizados pelo regabofe em que se tornou este país, num folclore constante com o único objectivo da caça ao voto, onde vale tudo, mesmo a mentira despudorada e irresponsável.
Até lá prefiro recordar o 27 de Abril, o primeiro dia em que o país foi verdadeiramente livre e, no exterior da prisão de Caxias, se receberam entre abraços e lágrimas de emoção os que sofreram pela liberdade.
AlmaSense
Eu ainda estava a tomar o pequeno-almoço quando ele entrou em casa e ligou o velho rádio Grundig que a minha mãe tinha em cima da máquina de costura e a chamou, para que fosse para junto dele.
A rádio emitia música clássica e eu achei estranho como eles falavam em voz baixa. A dada altura a música parou e a voz do locutor fez-se ouvir anunciando “Aqui, posto de comando das Forças Armadas ...” .
A minha mãe levou as mãos à cabeça largando um “Minha Nossa Senhora!” enquanto o meu pai a mandava calar com um “Espera, quero ouvir!”. Soube que alguma coisa se passava.
Nesse dia não fui à escola nem jogar à bola no descampado, com os outros miúdos. Passei o dia em casa, com os meus pais, ouvindo com eles os comunicados que o Movimento das Forças Armadas (MFA) emitiu durante todo o dia, a espaços, sobre o evoluir da situação.
Golpe de Estado, Fascismo, Polícia Política, Guerra Colonial e Liberdade eram palavras que eu não conhecia. Já ouvira falar de uma guerra em África e das nossas colónias na escola, mas as outras eram-me completamente desconhecidas. Nesse dia, contudo, ouvi-as pela primeira vez mas não perguntei aos meus pais o que queriam dizer. Tudo se estava a passar muito depressa e via-os preocupados.
Quando foi possível ver imagens na televisão lembro-me de uma multidão num largo a que chamavam do Carmo, um “carro de guerra” a que o locutor chamava chaimite e muita, muita gente a gritar quando o carro se movimentou. Lá dentro, ouvi, ia o Presidente do Conselho, aquele senhor que, todos os meses, fazia aquele programa que se chamava “Conversas em Família”.
Nos dias seguintes o povo andava na rua, contente, a falar do golpe de estado e dos militares, de um major chamado Otelo Saraiva de Carvalho e de um capitão Salgueiro Maia. Falava-se de Marcelo Caetano que ia para a Madeira, da PIDE e de presos políticos. Trocavam-se abraços e ofereciam-se cravos.
Os meus pais, visivelmente mais contentes, retomaram a vida normal, se normal se pode considerar ter sido a vida nos dias imediatamente seguintes ao 25 de Abril de 1974.
A 27 de Abril libertaram os presos políticos e começaram a prender os PIDES e aqueles que eram apontados de fascistas. Nas fábricas da CUF começaram a aparecer bandeiras vermelhas com foice e martelo e a GNR mantinha-se no interior das esquadras e já não andava a cavalo pelas ruas do Barreiro.
Começaram a chegar os políticos exilados e o primeiro 1º de Maio foi de festa com todos juntos a prometer um país novo, justo e livre.
Olho agora para trás, 34 anos volvidos, e pergunto-me como pudemos ser tão ingénuos deixando que gente tão incapaz tivesse assumido o controlo da sociedade portuguesa e desperdiçado a oportunidade que outros países tiveram só depois de terem passado por guerras sangrentas.
A Inglaterra, a França, a Alemanha, a Itália ou o Japão começaram de novo, mas só depois de terem passado por guerras onde sofreram milhões de mortos e perderam tudo, nalguns casos até a dignidade.
Nós fomos bafejados pela sorte e conquistámos esta oportunidade com um cravo nas espingardas e meia dúzia de mortos, em todo o processo. Talvez por isso não soubemos aproveitar a situação.
Otelo Saraiva de Carvalho foi usado pelos escroques políticos e acabou a apoiar atentados, sem sentido, contra pessoas ou estruturas inocentes, numa tentativa de fazer uma revolução proletária em que ninguém estava interessado.
Salgueiro Maia recolheu ao quartel, uma vez cumpridas as missões que lhe couberam (marcha sobre o Terreiro do Paço, assalto à sede da PIDE e tomada do Quartel do Carmo), nunca se dedicou à política e acabou por morrer ignorado e esquecido pelos seus pares.
Hoje a sua estátua está em lugar de destaque, em Santarém, mas durante anos esteve perdida, sob um amontoado de sucata, até ser descoberta cheia de pó e mandada restaurar por Moita Flores, Presidente da Câmara desta cidade, 30 anos depois do 25 de Abril.
Em minha opinião ao 25 de Abril aconteceu o mesmo. Esquecido como Salgueiro Maia e os verdadeiros heróis a quem devemos a nossa liberdade, o espírito do 25 de Abril foi usurpado por aqueles, doutores e engenheiros com diplomas de RGA e passagens administrativas, que tomaram conta das nossas cidades, das nossas instituições e nos governam desde então.
Em homenagem a Salgueiro Maia, eu recuso-me a comemorar o 25 de Abril enquanto os responsáveis pela adulteração do seu espírito não forem responsabilizados pelo regabofe em que se tornou este país, num folclore constante com o único objectivo da caça ao voto, onde vale tudo, mesmo a mentira despudorada e irresponsável.
Até lá prefiro recordar o 27 de Abril, o primeiro dia em que o país foi verdadeiramente livre e, no exterior da prisão de Caxias, se receberam entre abraços e lágrimas de emoção os que sofreram pela liberdade.
AlmaSense
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